domingo, 26 de dezembro de 2010

Nelson Freire, rádio e elemento surpresa

Este comentário foi ao ar inicialmente em julho/ 2010, no boletim "VivaMúsica! e o mundo dos clássicos", pela MEC FM do Rio de Janeiro. Meus comentários lá vão ar todos os dias, às 13h.

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Um vez, o pianista Nelson Freire disse em entrevista que gosta muito de ouvir música pelo rádio, pois assim não precisa ficar escolhendo disco toda hora.

Ele exemplificou o valor do elemento surpresa no rádio, mencionando que, um dia, ao ouvir certa peça de Liszt sendo tocada, estava certo que se tratava da colega e amiga Martha Argerich, até perceber um estilo de mão esquerda tipicamente seu. Era ele tocando Liszt.

Ao declarar-se um ouvinte regular e dar um exemplo contundente de como o rádio é capaz de surpreender, Nelson Freire levantou uma questão crucial para formação de platéias na música clássica.

A midia eletrônica - ou seja, rádio e televisão - são as principais portas de entrada para o mundo dos clássicos, seja você um iniciante ou um amante velho de guerra.

Aqui no Rio, a MEC FM cumpre com maestria esse papel de trilha sonora do cotidiano de quem ama os clássicos. É enorme o universo sonoro uma emissora de rádio pode oferecer, mas, a meu ver, ainda há muito a ser feito.

Veja o caso de São Paulo, por exemplo, onde existem 36 emissoras de FM no dial. Das 36, somente uma, a Cultura, tem programação integralmente dedicada aos clássicos: isso significa cerca de 3% da oferta de rádios. Você pode pensar que até está ok, pois nem tanta gente assim se interessa por música clássica. Negativo.

Uma pesquisa feita pelo Centro de Estudos da Metrópole mostra que 7% dos paulistanos têm música clássica como seu gênero musical favorito. Isso é muita coisa: a tal pesquisa mostrou que paulistanos gostam tanto de rap e hip hop quanto de clássicos.

Então, há - ou deveria haver - mais espaço pra a música clássica ocupar no dial FM de São Paulo.

Quem sabe um dia o pianista Nelson Freire não se surpreende ouvindo a si próprio numa rádio popular de São Paulo?

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Os comentários da MEC FM, aqui no blog

Desde julho de 2010, meu programa diário na MEC FM do Rio de Janeiro (98.9Mhz) tem sido destinado a refletir sobre questões do mercado de música clássica.

A rádio coloca os comentários de 3-4 minutos no ar, sempre às 13h. Às vezes, disponibiliza podcasts.

Como alguns ouvintes têm me contactado pra pedir os textos dos comentários, achei que seria uma boa ideia disponibilizá-los aqui no blog. Aos poucos, vou colocando o lote completo.

Vou começar pelos que foram ao ar em julho de 2010. Um lote de 12 comentários, cujo primeiro foi esse que reproduzo abaixo.

"Ouvido inocente & blindfold test"

Certa vez, a revista inglesa Gramophone publicou artigo de Harriet Smith sobre o "ouvido inocente".

A autora se refere à experiência de ouvir uma música sem saber de que se trata ou por quem foi escrita. Seria uma escuta sem pré-conceitos.

A articulista, que não gosta do compositor Philip Glass, relata uma ida recente a concerto sem saber o repertório da noite. Ela adorou uma das peças que era escrita por quem...? Justo Philip Glass.

Se soubesse de antemão se tratar de uma peça de Glass, seus ouvidos provavelmente estariam preparados para não gostar.

Bem interessante o artigo dela e todo esse conceito do "ouvido inocente". Me remeteu à questão de execução de repertório brasileiro em salas de concerto do Brasil.

É sabido haver um certo preconceito com relação à produção clássica brasileira. Repertórios nacionais atraem menos espectadores do que repertórios estrangeiros. O mesmo diz respeito à presença na mídia. Mozart dá mais Ibope que Francisco Mignone.

Essa história de "ouvido inocente" também me fez lembrar daqueles anúncios de refrigerante em que consumidores usam vendas nos olhos e, sem saber o que bebem, diziam qual sabor lhes satisfaz mais.

O tal do blindfold test - o teste de olhos vendados. Sem ver a embalagem e sem se deixar impregnar de todos os conceitos associados às marcas, o consumidor muitas vezes diz preferir um refrigerante que jamais compraria.

Ouvido inocente, olhos vendados.... se tem um canal que possibilita fartas experiências neste sentido, é a audição de rádio, em especial quando se pega uma peça no meio da transmissão.

Da próxima vez que acontecer a você, em vez de ficar amuado por não saber o que está tocando, aproveite a oportunidade de exercitar o "ouvido inocente", se surpreender e descobrir novos mundos sonoros.